Eram casas geminadas (você vê acima). O fundo delas era diferente. Na que eu morava havia um quarto lá no alto, uma espécie de casa-da-árvore sem a árvore, cujo acesso se dava de duas formas: por uma escada caracol enferrujada com os primeiros degraus esburacados; ou pelo terraço do vizinho. Este era o caminho que o Ricardo fazia. Subia a escada de concreto da casa dele, cruzava o terraço com a caixa d´água e pumba, pulava pro meu terreno, já direto na minha porta. Com o tempo Ricardo parou até de anunciar a sua chegada. Entrava e pronto.
Sou filho único, gosto de ficar sozinho, não precisei mediar muito meus horários, tenho desde sempre meu mundinho, e o quarto nos fundos da casa era perfeito para tal. Veja bem: Ricardo era meu amigo, eu gostava dele. Mas a sensação de que ele entraria a qualquer momento, como um personagem de sitcom que surge na cozinha do nada roubando a cena, gerava alguma angústia em mim. Às vezes queria ficar sozinho. Ele dividia quarto com dois irmãos mais velhos, ambos chatos, entraram numa onda católica, então palpito que, pra ele, me visitar também se parecia com ficar (um pouco) sozinho.
O jeito foi inserir Ricardo às minhas brincadeiras. Eu tinha uma persona dominante naquela relação. Era a única maneira que encontrei de não interromper minha sagrada atividade solitária a cada visita dele. Fui incluindo Ricardo ao meu fluxo de fantasias. Talvez ele gostasse mais do Mario Bros do que de futebol, mas não dei essa chance a ele. Aos poucos ele tomou gosto por desenhar estádios e times nas folhas sulfite, a simular futebol com dados, a jogar botão, arrastar figurinhas pelo tapete, tudo futebol ou Fórmula 1, ou quase: Ricardo tinha uma curiosa paixão por Fórmula Indy, que, pouco a pouco, também me trouxe. “Põe na Bandeirantes aí, hoje tem o GP de Laguna Seca”. Um belo dia, inverteu o convite: me chamou para jogar Indy no computador do pai dele.
Gente, um moleque de dez anos apaixonado por Fórmula Indy, uma Fórmula 1 sem o Senna, cheio de americano e só com pistas ovais, carros correndo em círculos. Enfim.
Era um computador ótimo para a época. Ele ganhara um jogo da Indy que tinha o veterano Emerson Fittipaldi junto daqueles nomes americanos tão conhecidos quanto desconhecidos, como Al Unser Jr e Bobby Rahal. Eu gostava do Senna, porra, a Indy me parecia uma palhaçada, e, além do mais, ele não me dava dicas de como jogar. Isso foi malicioso da parte dele. Fazia corridas inteiras e, na minha vez, eu batia na largada e devolvia o teclado. Eu era um anfitrião mais inclusivo, devo me gabar. Passou uns dias sem aparecer em casa, o Ricardo. Não sei se dedicou-se a ganhar o campeonato de Fórmula Indy.
Um dia Ricardo apareceu com tábuas de madeira. Queria pregos e logo exibiu um aro de basquete. Montamos uma cesta e penduramos no quintal. Tínhamos orgulho daquela obra de marcenaria. Eu tinha uma revista da NBA, com a tabela dos jogos. Decidimos jogar um contra o outro até a tabela acabar, mas cada time na NBA fazia 82 jogos, de modo que não concluímos, ainda, o objetivo. Tínhamos uma importante regra: quem fosse representar o adversário do Chicago Bulls tinha que jogar propositalmente de corpo mole, para simular e fazer valer a qualidade do Michael Jordan do lado adversário.
Teve também a noite isolada em que resolvemos jogar hóquei. Ele ganhou um taco, eu tinha bolinha de tênis e um golzinho de futebol de praia. Ele tomou uma bolada no olho e concluímos que aquele esporte não deveria existir. Ideias eram muitas. Um dia eu queria não ter ideias. Estava a fim de brincar sozinho e, quando ele entrou em meu quarto sem anunciar, mandei ele sair. Ele ficou magoado, sem graça, e nunca mais apareceu. Dia após dia, meu remorso aumentou. Foi batendo saudade e culpa. Não havia rede social, não tínhamos telefone celular. Escrevi uma cartinha pedindo desculpas. Pulei pro terreno dele, cruzei o terraço com a caixa d´água, desci a escada de concreto e soltei o papel na porta da cozinha, selado com uma palavra "confidencial".
Não queria que a mãe dele lesse.
Amanheci com uma carta na porta do meu quarto. Nunca esqueci da primeira frase. "Nossos bons amigos estão guardados em nosso coração de tal forma que não importa quanto tempo passe". Não sei se ele leu em algum lugar e copiou. Parecia uma escrita erudita, tínhamos 10 ou 11 anos. Fiquei emocionado. Foi possivelmente a primeira carta de amor que eu recebi, e minha primeira experiência de leitura bonita, sofisticada, solene. Quando o Ricardo presumiu que eu tinha lido a dita cuja, deu três toques na minha porta, entrou e voltamos a fazer qualquer coisa sem tocar no assunto, afinal, não importava quanto tempo tinha passado.
Quando me mudei, pouco depois, e fui parar no lado oposto da cidade, muito longe mesmo, e ainda sem redes sociais, não me despedi devidamente do Ricardo. Ele deve ter visto o caminhão da mudança e esperado meu adeus. Não dei. Já se passsaram 26 anos. "Não importa quanto tempo passe", ele escreveu. Vinte e seis anos é muita coisa. Eu gostaria muito de saber o que o Ricardo lembra daqueles dias, se me achava chato, autoritário, egoísta, bobo. Provavelmente não acha nada disso. Tico, o cachorro dele, e Maradona, o meu cachorro, naturalmente, já morreram.
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Indico o filme Arábia (2017, João Dumans e Affonso Uchoa). Tem no Youtube, de graça. Arábia é um filme sem plot twist, e esta é a forma de contar a vida de um mineiro bem brasileiro, vivendo naquele Brasil difícil, mas em crescimento, rude, mas generoso, sem luxo, mas perfumado, sempre oferecendo uma nova esperança já vestida de frustração. Um trabalhador médio, introspectivo, que quer se apaixonar, dorme em qualquer canto e aceita qualquer salário. Uma vida tocante, um filme bonito.
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Bobby Rahal é de 1953, Medina, Ohio, Estados Unidos. Estreou na Fórmula Indy em 1978. O cara foi tão grandão que teve uma equipe própria, a Team Rahal. Nome pouco criativo, verdade. Correu 264 vezes e tem três títulos: 1986, 1987 e 1992. Em 86 ganhou as 500 Milhas de Indianápolis, que é mais ou menos como ganhar um Fla-Flu para eles.
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"Ele deve ter visto o caminhão da mudança e esperado meu adeus. Não dei" . Aliás, uma das grandes ironias da vida é fazer coisas pela última vez sem saber que será a última vez. Sempre vivemos despedidas sem ter a consciência de que é uma despedida.
Poxa, emocionante. Nunca mais achou o amigo? Nem na redes sociais?